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As negligências médicas matam mais que o trânsito?

De acordo com os especialistas, reconhecer as negligências não deve servir apenas para depurar responsabilidades jurídicas, mas também para aprender com os erros e não voltar a cometer os mesmos erros.

Hospital: espaço perigoso
Hospitais com dor
Todos nós estamos em perigo
Há poucas semanas, no Parlamento britânico, David Cameron, o primeiro-ministro, pedia perdão publicamente pelas negligências, “verdadeiramente chocantes”, produzidas ao longo da última década em 14 hospitais do sistema público de saúde, e que resultou na morte desnecessária de mais de 20.000 pacientes.
Tentar saber quantas mortes acontecem em Portugal por erros médicos ou deficiências na atenção à saúde é missão impossível. Enquanto no Reino Unido foram realizadas cinco investigações para esclarecer este escândalo, e nos Estados Unidos foi criado o Committee on Quality of Healthcare in America (segundo o qual, a cada ano ocorrem no país entre 48.000 e 98.000 mortes por negligência), em Portugal não há um registro ou uma contagem destes eventos. “Há anos estamos pedindo às autoridades que se façam auditorias e diga-se a quantidade de mortes que poderiam ter evitado com uma atenção correta”, diz Carmen Flores, presidente da associação, O Defensor do Paciente. “O ocorrido na Inglaterra é um ato de clareza.”
Apenas 40% dos casos chegam a julgamento
Em Portugal, a única aproximação que temos com estes dados é a memória que a cada ano realiza-se esta associação. De acordo com a última delas, em 2012 morreram 692 pessoas por alegada negligência médica, 89 a mais que em 2011. De acordo com os seus dados: “Os casos mais comuns são produzidos por má conduta: intervenções mal feitas, atenção deficiente, infecções hospitalares, atrasos em ambulâncias… Mas a principal razão deve-se ao erro de diagnóstico e a perda de oportunidade terapêutica, como consequência da falta de meios pelos cortes de saúde”.
De acordo com um estudo de ENEIAS, 42% dos casos relatados de negligência poderiam ser evitadas
Mas estes dados, por si mesmos, não são senão uma aproximação grosseira da realidade. Como indica Carmen Flores,: “São somente o que nos chega até nós, de forma que é uma quantidade ridícula a teor do que possa acontecer em cada hospital. Sem medo de me enganar, eu diria que há mais mortes por negligência médico-sanitárias que por acidentes de trânsito”. Efectivamente, apenas se recolhem as denúncias apresentadas nesta associação, ficam fora da contagem de todas as que foram interpostos por outras vias e, claro está, que todas as que nunca chegaram a denúncias: “De todas as reclamações que recebemos, apenas 40% vai para os tribunais. O resto não segue em frente, quer por escassez de meios económicos, quer porque faltam muitos dados referentes à história clínica. E não embarcou para uma pessoa em um litígio, a menos que vejamos que há possibilidades reais de ganhar”, explica Flores.
Neste ponto encontram-se os familiares de Jesus R. S., de 63 anos, que faleceu há algumas semanas em Móstoles (Madrid). “Ficou mais de um ano com hematúria (botando sangue pela urina) e no hospital, só lhe diziam que tinha uma pedra no rim. Foi um monte de vezes para um número de emergência, até que, no final diagnosticaram que ele tinha um câncer de bexiga na fase 2, tiraram-lhe a próstata e a bexiga, mas não lhe deram nem quimioterapia ou radioterapia. E quando, pouco depois, começou a ter cerca de terríveis dores na perna, foi destacada a urgência, onde lhe diziam que era uma hérnia lombar. Fui a outro médico, que fez um relatório explicando que tinham que ingresarle. Quando abriram, viram que tinha um câncer que lhe foi achado, e em 10 dias ele morreu”, relatam os seus familiares. Estes solicitaram ao hospital e a história clínica completa do paciente, e estão à espera de que entreguem para, assim, estudar as possibilidades de apresentar uma queixa.
O sigilo hospitalar
Obter a história clínica é o primeiro passo. Neste sentido, explica Maria Antonia Morais, presidente da Associação de Vítimas de Negligências de Saúde : “Sim, você tem avançado nos últimos anos. Quando minha irmã morreu, eu tive que encerrarme no hospital ou entrar no ministério com uma lata de gasolina, para fazer com que me dessem a sua história. Agora, se entregam em todas as comunidades, só na Andaluzia tem que requisitar judicialmente”.
Avinesa é uma associação fundada por pessoas afetadas por negligências médicas, entre as quais se encontra Joana Ortega, a “mãe coragem”, que acampou durante um ano em uma praça madrilenha para pedir justiça após a negligência que deixou o filho em estado vegetativo.
Depois vem a dificuldade de conseguir demonstrar que, efetivamente, houve um erro, uma falha de uma pessoa ou do próprio sistema. “Percebe-se contra um muro”, explica Matilde Fernandes, cujo filho nasceu morto depois que ela fora duas vezes à urgência porque estava mal: “Quando finalmente me fizeram caso, já não havia pulsação. Mas agora você tem que mostrar que há uma relação de causalidade entre a morte do meu filho e o atraso no atendimento”.
Um 70% dos médicos atuam por medo das reclamações. Por isso, realizam uma série de testes
“Desde 1997 não estou outros casos de negligência médica”, diz o advogado Rafael Martín Bom. “Em todos estes anos, ainda não vi um chefe de serviço que tenha feito um relatório dizendo que alguém de sua equipe a tenha feito de errado. Nunca. Os hospitais têm uma taxa de mortalidade que investiga as mortes e dirime se houve ou não negligência. Mas nunca transcende”.
Muito diferente é a situação nos EUA. Lá, um relatório feito em 1998 pelo Institute of Medicine, e que tinha Errar é humano, levou o Governo norte-americano para a criação de um comitê em que colaboram destacadas figuras da política, da administração de saúde e de sociedades científicas, e que foi descoberta que uma quarta parte dos pacientes internados sofrem algum tipo de negligência médica. Além disso, um estudo da Universidade de Harvard, foi estimado que o número de mortes por negligência médica equivaleria a que está falhando três jumbos a cada dois dias e morressem todos os seus ocupantes.
A prática da medicina defensiva
Em Portugal, a falta desse observatório, contamos com o Estudo Nacional sobre os Efeitos Adversos ligados à Hospitalização (Estudo ENEIAS), realizado em 2005 e dirigido por Jesus Aranaz, do departamento de Saúde Pública da Universidade Miguel Hernández de Elche. De acordo com este estudo, a incidência de efeitos adversos relacionados com a assistência à saúde, em nossos hospitais é de 9,3%, semelhante à de outros países europeus. E quase a metade destes efeitos adversos (42,8%) poderiam ser evitáveis. Neste sentido, a doutora Mônica Lalanda, em seu artigo Erro médico. De homens, avestruzes e jumentos, após assinalar que a metade dos erros médicos são evitáveis, expõe que: “Para criar estratégias contra o risco de erros, primeiro tem que identificá-los. Infelizmente, o sistema de saúde português continua em sua maioria ancorado na era arcaica do corporativismo. Os erros são cometidos, mas se tapam. Não se facilita ao médico um domínio em que possa reconhecer o seu erro, sem medo da represália”.
Mas também observa que “o paciente espanhol deixou de tolerar atitudes paternalistas”, o que tem propiciado que as demandas por erros médicos tenham quadruplicou na última década. Assim, Domingo Linda Janeiro, professor de Direito Civil da Universidade de lisboa e autor de Responsabilidade civil do médico e responsabilidade patrimonial da Administração de saúde, aponta que: “a Cada ano há 100.000 novas contendas sobre negligências médicas que têm que resolver nos tribunais”. Isso estaria levando, continua: “Para que 70% dos médicos e enfermeiros exercem a medicina defensiva. Não tomar decisões de risco por medo das reclamações, submetendo o paciente a uma série de testes para que não fiquem cabos soltos”, explica Janeiro.
Mesmo assim, aponta o advogado Martín Bom: “O nível dos médicos espanhóis é bom. A partir de minha experiência, as negligências médicas raramente se dão por falta de treinamento, quase sempre se devem a negligência”. O problema, argumenta a presidente Avinesa, é que: “As negligências se escondem, o que leva a que os problemas se vão repetindo. Se houve um erro, o primeiro deve ser comunicá-lo, tanto para a direção do hospital aos familiares, ou ao próprio paciente, se não tiver falecido. Dizer, pedir desculpas e ir para o seguro de responsabilidade civil, embora, quando há uma morte, as vítimas não nos interessa a indenização, mas saber a verdade”.
Com relação às indenizações, Martin Bom se pergunta: “quem se beneficia desde os hospitais nunca se reconheça a culpa alguma? A seguradora. Se houve um erro, não é mais lógico admitir? A demanda não vai contra o médico, mas, sim, contra o serviço de saúde, e isso permitiria que quem tenha sofrido uma negligência tenha uma indemnização, enquanto que ocultándolo aqueles que se beneficiam são os acionistas da seguradora”.

Os erros custam caro
Cada vez estão mais demandas judiciais por negligência do empregador. Estes são alguns exemplos das sentenças que impõem os tribunais
Uma trombose de 30.000 €
A Secretaria de Saúde valenciana foi condenada a pagar esse valor para a família de uma paciente, já falecida, que perdeu uma de suas pernas depois que o hospital La Fé de Valência não detectados uma trombose.
95.000 €
O Tribunal Superior de Justiça de Madrid, foi condenado à Secretaria de Saúde a pagar 95.000 euros, J. A. P. H., um paciente que perdeu os dedos dos pés por um erro de diagnóstico. O hospital não detectada a tempo a pneumonia que sofria e que esse atraso provocou a amputação.
4 anos
de desqualificação e um ano e meio de prisão para um cirurgião do Hospital Senhora do Consolo de Valência, a morte de um paciente após uma negligência na operação de redução de estômago. O médico, condenado por um crime de homicídio involuntário, também deverá pagar 161.116,17 euros a viúva do falecido.
892.827 €
Esta indemnização a proferiu em 2002, um tribunal de Barcelona por um caso de infecção hospitalar em uma clínica privada. O paciente contraiu uma terrível infecção bacteriana após uma operação de hérnia de disco e não foi detectada ou diagnosticada até nove dias depois.
30.000 €
A Comunidade de Madrid foi condenada a pagar a uma mulher que tinha um carcinoma no peito, e a que se aplicou um tratamento errado consistente em cremes que ao final teve que ser atajado com uma mastectomia.
Tags: doenças, problemas médicos e negligências.

Isso assegura uma associação de doentes. Investigamos o

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